Certamente você já ouviu alguém falar que o cérebro pode ser dividido de acordo com sua anatomia e fisiologia, correto? Há anos, profissionais da área dividem o cérebro de acordo com regiões anatomicamente ou fisiologicamente ligadas a um dado comportamento ou característica. Uma possível explicação para isto é justamente a falta de equipamento para estudar a dinâmica cerebral em maiores detalhes, e portanto, os cientistas e estudiosos dos séculos e décadas passadas descreveram as funções das regiões do cérebro com base, principalmente, na retirada ou perda de lesão de alguma área do cérebro.
Um exemplo clássico foi o caso do paciente Phineas Gage, um operário americano que sofreu um acidente de trabalho, onde uma barra de ferro atravessou sua cabeça lesionando a região frontal do cérebro. Foi a partir da mudança de personalidade e do comportamento do Phineas Gage, que os cientistas começaram a desconfiar que a região da frente do cérebro (lobo frontal) poderia estar relacionado às funções executivas e personalidade.
Outro caso bastante conhecido e que abriu um novo leque para o estudo do cérebro e da memória é o caso conhecido como “Paciente H.M.”. Após a retirada da região do hipocampo para reversão de um quadro de epilepsia, H.M. apresentou prejuízos significativos de memória. Estudos indicam que este foi um dos primeiros casos que direcionou o hipocampo (região do cérebro) como uma região central da memória.
Como podemos perceber, a divisão do cérebro de acordo com a anatomia e fisiologia parece ter tomado grande parte da comunidade científica e médica que estuda o cérebro. Como podemos observar na figura abaixo, parece que esta clássica divisão acaba por segmentar o cérebro em pequenas estruturas que, quando retiradas, pode extinguir um comportamento ou funcionamento cerebral para sempre. Mas não é isso que ocorre, não é mesmo?
Nos últimos anos, uma nova teoria vem surgindo para contrapor a explicação clássica: os sistemas complexos aplicados ao cérebro. Você já ouviu falar de Sistemas Complexos (SI)? Por definição um sistema complexo é definido como um conjunto de subunidades que estão ligadas e exibem uma propriedade coletiva emergente (shorturl.at/nDPS8), ou seja, seu funcionamento não pode ser explicado a partir do estudo das partes, mas sim do funcionamento global. Mas o que isso significa?
Para facilitar a explicação, os sistemas complexos podem ser aplicados para uma ampla gama de áreas de estudo, tais como teoria dos jogos, formação de padrões evolutivos, teoria dos sistemas e redes aplicadas a teoria dos grafos. Um exemplo bem didático é ilustrado na imagem abaixo, onde pesquisadores brasileiros mapearam toda a interação entre personagens dos livros do Senhor do Aneis e aplicaram tais dados em um sistema complexo com teoria dos grafos. Na imagem cada ponto representa um personagem (ou nó) e cada linha que conecta os pontos a interação entre personagens.
Agora voltando um pouco para o cérebro… Na prática, isto significa que o modo que olhamos para o funcionamento do cérebro está mudando ao pouco, de forma que os cientistas agora buscam registrar o funcionamento do cérebro quase por completo para poder inferir mudanças relacionadas ao seu conectoma. Um exemplo é mostrado na imagem anterior, onde foi aplicado a conectividade por grafos do cérebro de um grupo de pacientes com transtorno bipolar, e foi observado que o padrão de ativação e conexão cerebral entre pares de regiões muda completamente de acordo com o estado da doença (nas mesmas pessoas!!!). Louco não é? Se fôssemos estudar o transtorno bipolar de forma clássica (onde pode ser definido como um conjunto de alterações nas vias dopaminérgicas bemmm locais), isto não seria observado.
Padrão de conectividade de um grupo de pacientes com transtorno bipolar nas duas fases do transtorno. À esquerda a conectividade global no estado maníaco. À direita as mesmas métricas aplicadas nos pacientes no estado depressivo.
Outro estudo mostrou que para realização de uma atividade motora, um macaco engaja a atividade de neurônios que ultrapassam a região que classicamente conhecemos para gerar o movimento. Sugerindo que o cérebro trabalha em conjunto e, possivelmente, todas as regiões contribuem para o funcionamento quase que homeostático das nossas atividades. Em detalhes metodológicos, os pesquisadores de tal estudo registraram a atividade de três regiões do cérebro de um macaco que estão relacionadas ao controle e execução do movimento (como você pode observar na figura abaixo, as cores representam as regiões registradas).
Os resultados mostram que durante a tarefa motora (figura de baixo), a dinâmica complexa expressa em grafos gerou quatro módulos (zonas de separação expressas em nas cores cinza, azul, laranja e amarelo) e que tais módulos não são exclusivos as regiões. Sugerindo que para realizar o movimento cada módulo recruta outras regiões do cérebro para realizar o comportamento, em vez de ser restrito ao local, como os cientistas clássicos costumam descrever.
Você ficou interessado neste tema? Fica de olho que em breve postaremos mais conteúdo sobre sistemas complexos e neurociência.
Referências
Spielberg, J. M., Beall, E. B., Hulvershorn, L. A., Altinay, M., Karne, H., & Anand, A. (2016). Resting state brain network disturbances related to hypomania and depression in medication-free bipolar disorder. Neuropsychopharmacology, 41(13), 3016-3024.
Ribeiro, M. A., Vosgerau, R. A., Andruchiw, M. L. P., & de Souza Pinto, S. E. (2016). A rede social complexa de O Senhor dos Anéis. Revista Brasileira de Ensino de Fısica, 38(1), 1304.
Dann, B., Michaels, J. A., Schaffelhofer, S., & Scherberger, H. (2016). Uniting functional network topology and oscillations in the fronto-parietal single unit network of behaving primates. Elife, 5, e15719.
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